O Lago dos Cisnes | texto de 2011

Sonhei com a parte do prólogo, quando acontece o feitiço

 Já houve o encantamento. Ab initio, o espetáculo de Tchaikovsky se desdobra na história de outra donzela aspirante ao extraordinário. No jogo especular proposto por Aronofsky, a narrativa também é duplo, estrutura deformada de O Lago dos Cisnes.

Somos lançados dentro do processo alucinado de incorporação artística encenada por Nina e da imagem deformada no espelho: a protagonista não pretende se libertar da forma de cisne; ao contrário, entrega-se, cada vez mais fundo, ao sortilégio.

Assumir a possessão (em outras palavras, ser possuidor da possessão) elimina a necessidade de um príncipe e seu amor exclusivo. Nina é a LEDA capaz de tomar pra si o segredo daquele que a violenta – nesse caso, nenhum Zeus em metamorfose, mas o desejo de atingir excelência em sua arte.

“Eu só quero ser perfeita” é o fio que nos puxa ao interior do labirinto.

E lá, na espiral de espelhos, o movimento do corpo, o ritmo da música, as cores alternadas se misturam à aquisição de todas as nuanças possíveis da alteridade radical ansiada – e ansiada até rebentar todos os limites.

Se Lily tem as asas de cisne negro tatuadas nas costas, se Beth vivenciou as faces obscuras do “duplo monstruoso”, Nina deixará a pele ser perfurada com a plumagem noturna e deixará as pernas se arquearem até perder a arquitetura frágil que as sustenta. Nina, Lily e Beth – três cifras de duas sílabas: o duplo que antecede a indistinção.

Não existe ninguém nessa história além de Nina. Seu corpo é o lugar de onde assistimos ao balé.

A faceta do cisne branco, identificada à mulher de 28 anos infantil, sob o domínio da ambiguíssima proteção materna, é tão teatral quanto será a do cisne negro. É a primeira máscara acoplada ao rosto, finamente transmutada em aderência.

A tese de que o bem e a pureza são maquinais, controlados e desumanos, explicitamente trabalhada num filme como O Olho do Diabo, do Bergman, ressurge nas dobras de inúmeras falas do diretor e professor de dança. “Deixe-se levar”, ele repete.

Quando o artista se entrega à pura experiência de ser, acontece o inesperado, o imprevisto, onde, segundo Eurípedes, “um deus encontra passagem”. #primeiro_recorte 

Cena Final

Trailer

A identificação do duplo monstruoso permite vislumbrar em que clima de alucinação e terror ocorre a experiência religiosa primordial. Quando a histeria violenta encontra-se no auge, o duplo monstruoso aparece em todos os lugares ao mesmo tempo. A violência decisiva vai se dar simultaneamente contra a aparição sumamente maléfica e sob sua égide. Uma calma profunda segue-se à violência furiosa; as alucinações dissipam-se, o repouso é imediato. Isto torna mais misteriosa ainda toda a experiência. Em um breve instante, todos os extremos se tocaram, todas as diferenças se fundiram. Uma violência e uma paz igualmente sobre-humanas pareceram coincidir.

 A totalidade da experiência é comandada pela alteridade radical do monstro.

O sujeito sente-se penetrado, invadido no mais íntimo do seu ser por uma criatura sobrenatural, que o assedia igualmente de fora. Assiste horrorizado a um duplo assalto do qual é a vítima impotente. Nenhuma defesa é possível contra um adversário que zomba das barreiras entre o fora e o dentro. A ubiquidade do deus, espírito ou demônio permite que as almas sejam atacadas a seu bel-prazer. Os fenômenos ditos de possessão são apenas uma interpretação particular do duplo monstruoso.

Não é de surpreender que a experiência da possessão apresente-se, frequentemente, como uma mimese histérica. O sujeito parece obedecer a uma força vinda de fora; ele tem os movimentos mecânicos de uma marionete. Um papel é representado nele: o do deus, do monstro, do outro que o está invadindo. Todos os desejos são aprisionados na armadilha do modelo-obstáculo que os destina à violência interminável. O duplo monstruoso apresenta-se imediatamente após e no lugar de tudo que fascinava os antagonistas nos estágios menos avançados da crise. Ele substitui tudo o que cada um deseja simultaneamente absorver e destruir, encarnar e expulsar. A possessão não é senão a forma extrema da alienação ao desejo do outro. GIRARD, René. A violência e o sagrado. p. 207


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