POST SCRIPTUM
Para demolir o princípio de Auschwitz. “A barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão”, escreve Theodor Adorno em “Educação após Auschwitz” (texto de 1967 a partir de uma palestra de 1965).
“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (Horkheimer & Adorno, 1947)
O autor pergunta o que teria acontecido com a promessa de progresso. Por que teríamos afundado “em uma nova espécie de barbárie”? Retoma as ideias kantianas de maioridade e de esclarecimento como possível defesa contra as ameaças de retorno à “desumanização mais radical”:
“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (…) A pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas (…) A barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão”.
A maioridade, conforme Kant (num artigo de jornal de 1783), começa na autonomia e na autodeterminação e é condição necessária à formação de “sujeito crítico”. A abertura a uma organização progressivamente mais esclarecida começaria com a liberdade no uso público da razão. Adorno recusa a noção de “natureza maléfica” de certos indivíduos e reafirma a importância da “autonomia do sujeito”.
“Devemos trabalhar contra a inconsciência, devem os homens ser dissuadidos de, carentes de reflexão sobre si mesmos, atacarem os outros. A educação só teria pleno sentido como educação para a autorreflexão crítica. (…) O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação…”
Adorno continua a perguntar: Como recaímos no mito e na fetichização da técnica? Como reduzimos a vida humana a números? (“Especificar ou regatear números é decididamente indigno”, afirma.) Como educar para que algo como Auschwitz não se repita?
“O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressivo que ocorreu em muitos países desde fins do século XIX. Não poderá ser recusada a consideração de que a invenção da bomba atômica, que pode literalmente extinguir centenas de milhares de pessoas de uma só vez, pertence à mesma categoria histórica do genocídio”.
A. Januário propõe uma leitura de Adorno focada nos “potenciais de resistência” como antídoto às forças autoritárias, ao princípio de Auschwitz que ressurge e segue como violência brutal contra dignidade humana.
PS 1. A série de textos (incluindo este), que parte da “questão das linguagens totalitárias”, é somada às publicações que respondem à barbárie contemporânea. O curso “Morfologia do Profano”, ministrado em 2019, igualmente.
PS 2. A fetichização da técnica (junto da redução da vida humana a números) participa dos processos de desumanização radical promovida pelo neofascismo ou fascismo contemporâneo (como tem sido chamado). O uso de robôs para a promoção de fake news, por exemplo, ou a presença online que tem engolido as potências vitais, as potências do corpo, estão nesse lugar.
No filme Ex-Machina: Instinto Artificial, de Alex Garland, a técnica é representada na figura de uma mulher programada para seduzir o programador (bastante sintomático), construída com base na informação de pornografia acessada pelo personagem. Aqui, há um entrelaçamento das estratégias de coisificação do “outro” e das novas formas de totalitarismo.
“Um dia os IAs [robôs de alta tecnologia] vão olhar para nós como símios eretos prontos pra serem extintos“, diz o bilionário diretor executivo da empresa produtora ao programador (que tem seu talento sequestrado pelo capital, que ignora seu papel nos propósitos do capital).
Nesse filme, como é comum na história das representações, a desumanização da alteridade se funde à desumanização da figura da mulher (pensamos nisso em Tellus Mater, aí também está o fundamento do etnocídio e do ecocídio). Qual seria o tipo de consciência da técnica? A existência da técnica pode ser autônoma? Por que “a coisa” é representada como “uma mulher que seduz”?
Isso merece um texto à parte, quanto aos mecanismos de destruição da autonomia e do senso humanitário vinculados à fetichização da técnica e à pornografia. Importante destacar que a fetichização é um culto, uma idolatria, que ao mesmo tempo em que venera tem um caráter de empobrecimento e redução do que é propriamente humano.
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(2) Um antídoto às linguagens autoritárias.
(3) O direito à narrativa é o direito à existência.