Salinas (excerto)

4. EXCLUSÃO

            A galé dos banidos avança à cidade do despejo. O passeio penetra a bruta névoa. (…). Os assobios do vento, uns uivos de demônio, somem no destino, um lugar baixo.

[…]

                     ─ Antes amnésia ─ uma voz gravíssima suspende o rito insone.

            ─ Antes demência. Porque na triagem dos corpos, os loucos e desmemoriados também são lançados no poço, e somem do abandono assim, na ignorância do crime praticado.

            ─ Cuspir na tua cara, chutar a porcelana da tua espinha, e seríamos só infelizes quebrantados, urinados nas calças, no meio do frio. Somos gente, e essa falha não se faz poeira úmida.

            ─ Antes a memória no encalço do erro, ensaiado e estresido desde cedo, até ser dito natural. Durante o pânico, até os insetos matam em bando. Sem suspeitar da culpa. Sem cogitar a pena.

            ─ Só a memória desmancha a nódoa inscrita nas coisas pela repetição da cegueira.

            ─ Pela força dessas lembranças, eu talvez vivesse mais um século. É tanto a fazer.

            ─ Eu só quero dormir.

            ─ E há casas no exílio?

            ─ Às vezes.

            ─ Talvez.

            5. NUS

            Se a pele contrai o frio como quem contrai um delírio de febre, o frio, por sua vez, contrai os séculos como se cada século fosse uma doença, um pensamento mórbido, uma dívida que é impossível pagar. 

            Aquela gente falida, com chagas em alguma parte do ofício de existir, tudo multidão espoliada.

            Os primeiros expulsos remoem as cenas. O arrependimento coletivo sob a peste.

            E a muralha do continente sobe até o ponto onde se oculta o limite. O ponto máximo. Babélico.

          Afundo os calcanhares na brancura. Não tenho mais corte. Só incômodo. Memória de uma dor.

            Penso no barco talvez impossível. E a distração se estende até o pássaro, com o bico no vazio, à espera da história com migalhas.

            B. ainda está aqui. Anda em si como num estranho à procura de toalete. Como alguém dopado pela fumaça de um incêndio no porão, que de repente se visse em casa alheia. O garimpeiro – não esquece – recolhe a beleza debaixo de muita lama e esforço. Pra o luxo de outros. Pra o próprio sustento.

            Morde a maçã. A carne da fruta é cruelmente alegre. Morde como se não comesse há séculos

            : com fome.

            Pediria pão. Pediria água. Pediria mel e leite. Porém há um crime, e é preciso saber mais. Mas o que é preciso saber?

            Não devia explicar. Outros dizem que sim, devia explicar mais. Há sempre muitas dívidas a levar em conta.

            Talvez seja um tipo de arrogância. Pensar como quem nada em mar aberto. As espáduas se enganam que são asas, e então se assombram com o estrondo do fluxo, quando o fluxo se agrava. E o vento cava uma fenda miúda no rosto, e a boca se abre pra engolir o que puder deste espaço. Que existe sem nós.

            Antes, os pássaros da carnificina eram mansos como terra seca. Deixei a morte à vista. Delirei a respeito de coisas bem maiores do que a humanidade. Devia ter vergonha de não cobrir o rosto. De não esconder os lábios rachados pelo frio.

            Há mais de um crime. Porém agora é a criatura despelada o que ainda dissecamos. A falta de ar incha o rosto flébil, e B. exibe os coturnos cheios de neve, o contorno escuro da face, a mancha azul e roxa entre os dedos. Ainda assim parece com mais vida do que Tácito. Lentamente ressuscita nos registros, enquanto as roupas rubras, em volteios, enchem a sala de sol. Sangue, incêndio. Não sei mais. É criatura antiga, anárquica, desenho de esfinge no imaginário da lei.

            É preciso saber. Isso demora. E é preciso saber o que saber. E como saber. E quando.

            Mas não se sabe.

            Qualquer pista é um nome gasto.

            O corpo dobra de tamanho, dobra a dor na respiração, a dor nas costelas: bendita seja a esterilidade do teu ventre, o alívio sem dono que uma nudez esfrega na floresta inerte das coisas comunicáveis. E então toma nos dedos a tela onde se lê: “é isto”.

            E é só.

            Mas não aceita. Não aceita.

            A pressa, a pressa de um estranho que nada tem com isso (até onde sabe, até onde se sabe), essa pressa atrapalha a reconstituição do crime.

            Um perito precisa de mais de espaço pra devolver a um corpo sua condição de gente.

            Nesta pauta não há mais peritos. O crime é tão antigo que prescreveu. A vítima ainda convulsiona como um possuído enquanto o espírito de porco despenca, e há todo o tipo de coisa a querer do outro lado. O lado onde nenhum de nós pode chegar. Foi essa pressa que trincou o primeiro vidro.

            É preciso voltar, recolher as raspas de remédio vencido, rasuras. É preciso estar aqui, acordado como um louco, entregue e solitário, babando a si mesmo por todos os poros.

            Pulo de vez.

            O desamparo acossa. Digo enfim

sós

            : o que te leva a imaginar fundura humana suportável.

            Voltamos ao limite. Voltamos:

            Estamos nus. E sabemos.

Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.

Imagens. Stephanie Inagaki.

Salinas (excerto)

2. SUPORTE

            É proibido ferir-se. Não esqueça.

         O comércio de hologramas prosperou. Quem sairia à rua vestido na própria pele? 

            Confinado nas horas mais íntimas, o corpóreo se tornou, pra muitos, um fardo. Nem sempre suportável. Alguns, mesmo sem a condenação ao exílio, pediam a submissão ao “carcereiro químico”, o alívio temporário, mas efetivo, alcançado pela dormência das necessidades e os desejos do corpo recluso.  

            Houve a imposição de regras específicas a certos tipos de suporte. Por exemplo, só se permite menstruar a quem puder pagar o preço.

            Taxada pelo preço do ridículo ou do fantástico, a decisão de recusar o código antimenstrual, regulador dos ciclos do suporte fêmeo.

            Suporte.

           Foi assim com as refugiadas. Foi assim com as cerzideiras. Pagaram o preço.

           […]

3. CERZIDEIRAS

            Fico neste quarto até cansar de ver a sombra das grades no tule e na pele. Forma recortes na brancura, que se estende – interminável – até o vestido. Ali, nas bordas da caixa, parece um pano eviscerado.

            A janela tem grades pra impedir que os meninos se acidentem. Nenhum deles virá hoje. Nada das correrias e os gritinhos em falsete. Faço de conta por eles que sou eu. A cerzideira.

            Imagino o continente do tamanho de um dedal. Agora sou bem menor que a cabeça de uma agulha. E estou entre as caixas, os trapos, as coisas esquecidas. Com olhos que são furos num lençol.

            Gosto das cenas com lençóis: a quietude balança, toda limpa (e por um fio). Pode ser no leito de núpcias, a espera esticada e branca. Uma espera por levantes. Porque os lençóis são signos de anúncio. Logo se reconhece o tumulto das vozes em cada tira de algodão. O sono interrompido pelo gesto: expiração da força onírica.

           Os pequenos, por exemplo, transformam o tecido em lábaros de guerra: os panos são rapidamente arrebatados por pirataria e heroísmo.

           Os amantes, por sua vez, as tramas macias com outro ritmo: o brusco do imprevisto. Porque é insustentável a placidez da costura.

            Sinto-penso: estou aqui por vontade própria. Mas sei bem que estou prisioneira de incidentes que me ultrapassam. Fora daqui há tanta neve. Queima até a voz. Imagine isto: uma voz incendiada pelo frio. Pó, fendas, quinquilharias. Sou parte do que tem falhas. Cubro esse escândalo com tule branco.

            Imagine isto: alguém vai ao médico, e o médico censura a exibição despudorada de uma febre ou, pior, de uma doença crônica. Aqui não se trata de exercitar a força, mas de entender a força como único horizonte. E há muitas noites em que tenho pesadelos com gente que aponta meus pés e me expulsa às bofetadas. Ando sempre à beira do exílio. Mordo a língua. Tomo o cuidado de não respirar fundo demais.

            Qualquer indisposição expressa às claras é um risco muito alto. Há sempre um controlador à espreita. Mesmo em manifestações de alegria, eles destroçam às dentadas quem surge de repente com o rosto mal lavado. E o corpo tem das suas tiranias. Qualquer onipotência teria se esvaído entre as pernas como a menstruação.

Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.

Imagens. Yulia Napolskaya.

habitar outra voz

fazer da voz um campo de acolhida — uma habitação pra refugiados — talvez seja uma das potências da poesia 》 aqui, num arranjo pela democracia, num @ato.poetico

habitar este livro. habitar a voz de uma das pessoas que mais admiro e quero bem, @marciatiburi ♡

habitar cada voz que ache espaço entre as palavras (e que elas cresçam desta semente de mostarda) guardar um instante como quem atravessa a fragilidade e nesse gesto tece um manto em favor da pele (do que na pele é fôlego 》 pra si e pro outro)

guardar este instante como quem respira fundo

outra vez

#atopoetico #poesia #resistência

Salinas (excerto)

Foto: Pierre Pellegrini

 
[Uma história que comecei a escrever em 2010 e que em 2020 parece urgente.]

capítulo 1 | não esqueça

            Instituiu-se a lei do banimento.

            O perigo – foi dito – é o contágio. A peste espraiar-se entre os muros e as telhas e fazer do cenário uma doença sem cura.

            O inverno estende-se no solo (pele e sudário), e a memória cumula porções de branco: amontoa salinas à ideia de alvura abrasiva.

            Salina: planura de cristal feita de mar evaporado. Ausência de sal. Ausência de mar. Só há estas nevascas de fazer ferida. Porém é proibido. Ferir-se.

            Não esqueça.

            Os primeiros expulsos foram os idosos e os debilitados. E agora são tantas minúcias a decidir quem permanece, que imagino a fundação de um continente de banidos.

            O dia de recolher é o pior. Espiam cada fresta de espaço à cata dos feridos. E despejam a humanidade em caçambas, repartida em pilhas simétricas.

            Quando a galé avança, a náusea reverbera (na luta em si mesma) a litania úmida dos cativos (um canto pra dentro). E porque humilhação a mais estoura em revolta, às órbitas de cada corpo – marcado com uma sentença numérica – acopla-se o “carcereiro químico”.

            O “carcereiro” é um implante. Castra o ímpeto e até o ânimo. O corpo abatido entende e suporta. Isso dura até o ponto de chegada: o território do descarte.

            Se as tentativas de rebelião não se tornaram regra, o mesmo não se diz das bacias quebradas, fratura de ossos, gente a se espatifar no chão como louça suja.

            E os pequenos perguntaram coisas impossíveis. Queriam entender o esquecimento. E com o espanto preso à face, insistiam “esquecimento”, tomados de assalto pelo som da palavra e pelo sentido alheio de sua música.

            Enregelados na súbita revelação, subiam, no íntimo, montanhas de gelo. Descobriam a afinidade fundamental entre ascensão e densidade. Isso. E como se transforma gente em coisa inválida.

Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.