POST SCRIPTUM

cena de Ex Machina: Instinto Artificial (ver post scriptum 2)

Para demolir o princípio de Auschwitz. “A barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão”, escreve Theodor Adorno em “Educação após Auschwitz” (texto de 1967 a partir de uma palestra de 1965).

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (Horkheimer & Adorno, 1947)

O autor pergunta o que teria acontecido com a promessa de progresso. Por que teríamos afundado “em uma nova espécie de barbárie”?  Retoma as ideias kantianas de maioridade e de esclarecimento como possível defesa contra as ameaças de retorno à “desumanização mais radical”:

“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (…) A pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas (…) A barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão”.

A maioridade, conforme Kant (num artigo de jornal de 1783), começa na autonomia e na autodeterminação e é condição necessária à formação de “sujeito crítico”. A abertura a uma organização progressivamente mais esclarecida começaria com a liberdade no uso público da razão. Adorno recusa a noção de “natureza maléfica” de certos indivíduos e reafirma a importância da “autonomia do sujeito”.

Devemos trabalhar contra a inconsciência, devem os homens ser dissuadidos de, carentes de reflexão sobre si mesmos, atacarem os outros. A educação só teria pleno sentido como educação para a autorreflexão crítica. (…) O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação…”

Adorno continua a perguntar: Como recaímos no mito e na fetichização da técnica? Como reduzimos a vida humana a números? (“Especificar ou regatear números é decididamente indigno”, afirma.) Como educar para que algo como Auschwitz não se repita?

“O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressivo que ocorreu em muitos países desde fins do século XIX. Não poderá ser recusada a consideração de que a invenção da bomba atômica, que pode literalmente extinguir centenas de milhares de pessoas de uma só vez, pertence à mesma categoria histórica do genocídio”.

A. Januário propõe uma leitura de Adorno focada nos “potenciais de resistência” como antídoto às forças autoritárias, ao princípio de Auschwitz que ressurge e segue como violência brutal contra dignidade humana.

PS 1. A série de textos (incluindo este), que parte da “questão das linguagens totalitárias”, é somada às publicações que respondem à barbárie contemporânea. O curso “Morfologia do Profano”, ministrado em 2019, igualmente.

PS 2. A fetichização da técnica (junto da redução da vida humana a números) participa dos processos de desumanização radical promovida pelo neofascismo ou fascismo contemporâneo (como tem sido chamado). O uso de robôs para a promoção de fake news, por exemplo, ou a presença online que tem engolido as potências vitais, as potências do corpo, estão nesse lugar.

No filme Ex-Machina: Instinto Artificial, de Alex Garland, a técnica é representada na figura de uma mulher programada para seduzir o programador (bastante sintomático), construída com base na informação de pornografia acessada pelo personagem. Aqui, há um entrelaçamento das estratégias de coisificação do “outro” e das novas formas de totalitarismo.

“Um dia os IAs [robôs de alta tecnologia] vão olhar para nós como símios eretos prontos pra serem extintos“, diz o bilionário diretor executivo da empresa produtora ao programador (que tem seu talento sequestrado pelo capital, que ignora seu papel nos propósitos do capital).

Nesse filme, como é comum na história das representações, a desumanização da alteridade se funde à desumanização da figura da mulher (pensamos nisso em Tellus Mater, aí também está o fundamento do etnocídio e do ecocídio). Qual seria o tipo de consciência da técnica? A existência da técnica pode ser autônoma? Por que “a coisa” é representada como “uma mulher que seduz”?

Isso merece um texto à parte, quanto aos mecanismos de destruição da autonomia e do senso humanitário vinculados à fetichização da técnica e à pornografia. Importante destacar que a fetichização é um culto, uma idolatria, que ao mesmo tempo em que venera tem um caráter de empobrecimento e redução do que é propriamente humano.

TEXTOS RELACIONADOS

(1) O que pode o corpo de uma língua?

(2) Um antídoto às linguagens autoritárias.

(3) O direito à narrativa é o direito à existência.

a fetichização da técnica

O direito à narrativa é o direito à existência

Imagem: Esther Mahlangu, artista da nação Ndebele.

Para pensar “a legitimidade e o estudo da filosofia africana”, tema do ensaio[1] de Mogobe Ramose (filósofo sul-africano), é preciso confrontar o epistemicídio promovido pelos colonizadores. Epistemicídio, na definição de Ramose, é “o assassinato de maneiras de conhecer e de agir dos povos conquistados”. A imposição dos próprios critérios sobre a produção de conhecimento é uma afirmação de poder que subjuga também intelectual e culturalmente as colônias exploradas do ponto de vista econômico. A autoridade tomada para si pela força (violência) foi necessária à construção da ideia de supremacia branca europeia. A autoridade de definir, conforme Ramose, é o poder de determinar o destino. Essa é outra dimensão do extermínio que resultou das guerras injustas e do mercado de escravizados. Abrir espaço para diferentes filosofias faz parte de acolher a autodeterminação dos povos quanto à sua existência intelectual e quanto à legitimidade do conhecimento que produzem (o que não significa prescindir de critérios e rigor). Evitar definições autoritárias (“isto é assim, de uma vez por todas”) é evitar epistemicídios.

Embora nosso foco seja o ensaio de Ramose, a resistência do “outro” pode partir da crítica feminista à noção de “sujeito universal”, conceito de Virgínia Woolf em A room of one’s own [1929], que reivindica condições para a produção intelectual das mulheres. Mogobe Ramose cita o proselitismo cristão e a ideia filosófica de “sujeito racional” como armas do poder sobre os povos colonizados (também comenta a questão das mulheres). Questiona a universalização do particular de uns em detrimento do de outros e propõe, em vez disso, a noção de pluriversalidade. O distinto do pretenso “universal”, o “outro”, é categorizado como irracional (na tradição da filosofia ocidental) e como condenado (pela religião cristã). A categoria é própria do que se considera objeto, não sujeito, tipo de violência posto em xeque também por Renato Noguera, que estuda as filosofias afro-brasileiras e as indígenas[2]. Renato contribui à reflexão quanto às “origens da filosofia”, que recusa o estatuto ontológico na base da exclusão ou da inferiorização da diferença (alteridade). Outra contribuição relevante para esta conversa é o celebrado O perigo de uma história única, de Chimamanda Ngozi Adichie. Por fim, destacamos que o apagamento da subjetividade (desumanização) do “outro” atingiu e atinge a imagem e os corpos desses outros. Isso indica que o direito à narrativa é o direito à existência.


TEXTO VINCULADO (anterior): Um antídoto às linguagens autoritárias.

[1] “Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana”. Em: RAMOSE, M. B. Ensaios Filosóficos, Volume IV – outubro/2011.

[2] “Introdução à filosofia a partir da cultura e da história dos povos indígenas”. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/article/view/23786

Um antídoto às linguagens autoritárias

Imagem: VIDA COMPARTILHADA [detalhe], do artista S.C. Suman (Subodh Chandra Das)

Filosofia e ensino de filosofia como antídoto às linguagens totalitárias. Na reflexão filosófica, é justamente a presença de obstáculos, de “becos sem saída” (aporias) em certas percepções e abordagens num sistema específico de compressão da realidade o que inaugura as diferentes formas de fazer e de ensinar filosofia. Essas diferentes formas são destacadas por Gonzalo Armijos (no artigo “O ensino da filosofia e a ‘situação-problema’”) em oposição a noções normativas do que é filosofia e do que é o ensino de filosofia.

A proposta (para o ensino e o fazer filosófico) é repensar os conceitos e as formas estabelecidas (sobretudo as autoritárias), é um convite à abertura para a diversidade de perspectivas e também à tensão do que não se resolve, do que segue como desafio e flexível a ajustes e a reformulações conforme as circunstâncias e o tipo de problema enfrentado por quem filosofa ou ensina a filosofar (isso resulta em compreender como válidas definições diversas do fazer filosófico que surgem em cada contexto: histórico, sociocultural etc.).

(“A filosofia, aqui, também coloca em questão a si mesma”, grifa a professora Juliana Oliva, da FEUSP).

Nessa perspectiva, a necessidade de achar uma solução já não é o coração do desafio. Agora, o acolhimento do obstáculo e do desafiador é o que move o pensamento filosófico. Digo: o acolhimento do desafio é um estímulo ao serviço de refazer o real a partir da modulação do que se compreende como real. Ao dizer modulação, penso em diálogo (essa “condição do fazer filosófico”, conforme Platão citado por Armijos). Diálogo com a pluralidade do atual e com a pluralidade do passado (a tradição canônica ocidental mais o resgate das vozes silenciadas em modelos excludentes).

E ao pensar em filosofia como exercício de refazer o real a partir da modulação do que se compreende como real, lembro do ensaio “Profanações”, do filósofo italiano Giorgio Agamben, que termina com o chamado à tarefa de “profanar o improfanável”, quer dizer, à tarefa de devolver ao uso comum (e ao jogo) o que foi separado do espaço público e confinado ao uso (ou abuso) restrito.

O que Agamben propõe, em sintonia com o exposto, é democratizar o que se instrumentalizou como totalitário, é libertar no que se tornou propriedade privada (conceitos, formas de agir etc.) a potência profanadora da partilha: a oportunidade de, contagiado pelo “outro”, poder ser de outra forma, poder modular as cartografias do possível.

VER TAMBÉM A questão das linguagens totalitárias em O que pode o corpo de uma língua?

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. “O Elogio da Profanação”. Em: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

ARMIJO, Gonzalo. “O ensino da filosofia e a ‘situação-problema’”. Em: CARVALHO, Marcelo. CORNELLI, Gabriele. Filosofia e Formação. Volume 1. Cuiabá, MT: Central de Texto, 2013. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/401646/1/Filosofia%20e%20forma%C3%A7%C3%A3o_Vol_1.pdf

OLIVA, Juliana. Apresentação do Curso Introdução aos Estudos da Educação (enfoque filosófico). Produção do Diário de Bordo.

POÉTICAS DO OLHAR: ALBERTO CAEIRO E ÁLVARO DE CAMPOS

imagem: “Perseguindo nuvens”, arte de Gemmy Woud-Binnendijk

1. Alberto Caeiro

 “Eu nunca guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse”. Assim Caeiro se apresenta no início do conjunto de poemas “O Guardador de Rebanhos”. Conforme Glagliardi (2006): “Alberto Caeiro é alegoricamente pastor, uma vez que sua proposição inicial é essencialmente metafórica: ‘as minhas ideias são o meu rebanho’”. Através desse artifício da linguagem, o personagem-mestre pastoreia seu ideário: a objetividade plena de um olhar imerso na paisagem natural, tomado pela irrupção, sempre renovada, da real natureza das coisas.

“O meu olhar é nítido como um girassol.  / Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás…  / E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto, / E eu sei dar por isso muito bem / Sei ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras…/ Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do mundo…”. (Caeiro: 2011)

Caeiro teria escrito “O Guardador de Rebanhos” e “O Pastor Amoroso”, duas das três composições de sua obra, longe de Lisboa, sua terra original. O fragmento fictício-biográfico é parte da construção dessa voz que se distancia da modernidade pela intenção de incorporar uma simplicidade ancestral: a aldeia da tia-avó. O cenário, portanto, figura o arcabouço de sensações a um visitante-autor que só está ali idealmente. Há, nesse ideal, o afastamento de uma origem de fato e a fundação de outra: um deslocamento ontológico.

A poética do olhar, em Caeiro, é a utopia de um despojamento radical, a de um deus menino que abdicasse de sua condição de transcendência (cristã) para indicar nas formas naturais a visão da realidade absoluta, o real imediato (quer dizer, não mediado), cujo sentido é estar no eterno presente, sagrado em cada uma de suas aparências.

“O Menino Jesus adormece nos meus braços / E eu levo-o ao colo para casa. / Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. / Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. (…) E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,/ E que o meu mínimo olhar / Me enche de sensação, / E o mais pequeno som, seja do que for,/ Parece falar comigo. (…) A mim ensinou-me tudo. / Ensinou-me a olhar para as cousas.”

A infância que serve de modelo a essa poética é a potência divina que se move em cada sensação como se renascesse em cada olhar:

“Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, / Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores, / Isso será uma alegria e uma novidade para mim.” (Caeiro: 2006),

como se nesse percurso fosse cada vez mais radicalmente se desnudando das camadas de obstrução entre quem vê e o que é visto, despindo-se da filosofia, da teologia etc., para atingir a pura imanência.

“Aparentemente destituído de ânsia especulativa, ele escapa às aporias da metafísica, e potencializa, como pedra de toque dessa poesia, uma filosofia da visão; uma visão sem artifício ou sede interpretativa, que elege como referência o modelo infantil, sem ignorar, no entanto, o universo cultural que lhe segue. Dessa forma, a hipótese de um suposto momento original e absoluto, porque uno, transforma-se num caminho crítico em ‘O guardador de rebanhos’, cujo vetor principal aponta da complexidade para a simplicidade.” (Gagliardi: 2006)

            “Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.”, diz Caeiro (2006) em “O Pastor Amoroso”. Essa ilustração infantil, de uma linguagem “despida de afetos e apelos emotivos, sem metro, rima, jogos sonoros ou marcação rítmica” que “se vale, em síntese, daquilo que se apresenta como natural e espontâneo” (Gagliardi: 2006) não se desfaz, porém, da constatação de um impedimento: “Porque me falta a simplicidade divina / De ser todo só o meu exterior”, conclui Caeiro (2011).

O imaginário poético sempre substitui a presença das coisas a que alude, porque a natureza da imagem é sinalizar não um estado de presença inesgotável, mas uma distância e uma ausência. Onde há olhar, a nudez é inatingível, e é inatingível a dissolução da barreira entre sujeito vidente e objeto visível. Entre ambos há o visto, que se torna imaginado.

2. Álvaro de Campos

Álvaro de Campos, o engenheiro naval, encena uma insatisfação voraz, que diz desejar “sentir tudo de todas as maneiras”, abranger tempos e espaços distintos, distintas formas de ser, a partir de um olhar radicalmente deslocado de uma suposta imediatez do real. A poética de Campos enfatiza a tensão entre o edifício das sensações e a visão de uma paisagem artificial, “untada mistura metálica e marítima”, em que o maquinal e o sensível alternam-se na expressão de uma ânsia e um saudosismo em contraponto.

 “(…) E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá / [embarcar neles, / Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas, / Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das / [despensas, / Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pro alto, / Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas, / Cheirando a untada mistura metálica e marítima de / [tudo aquilo — / Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma / coisa,/ Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.” (Campos: 2013)

Novamente, um fragmento fictício-biográfico ilustra o caráter desta voz poética: diferente dos outros heterônimos, Campos não escreve a tinta, mas na máquina de escrever. Nascido em Tavira, uma pequena cidade na costa algarvia de Portugal, vai estudar na Escócia e passa férias no Oriente, mas depois retorna a Portugal, mora em Lisboa. Tem o olhar de quem acrescentou camadas de complexidade cultural e de civilidade à sua origem, de quem exibe as entranhas do mecanismo que produz a vertigem das sensações. Conhecido pela grandiloquência e o ímpeto de uma palavra que sempre extrapola os próprios vislumbres, no entanto revela – em seus artefatos poéticos – a forja que são os procedimentos de pensar.

Fernando Pessoa, numa apresentação dos poetas sensacionistas ao público inglês, escreve a respeito do que considera a obra-prima de Campos, o poema “Ode Marítima”: “…ocupa nada menos do que 22 páginas de Orpheu, é uma autêntica maravilha de organização. Nenhum regimento alemão jamais possuiu a disciplina interior subjacente a essa composição, a qual, pelo seu aspecto tipográfico, quase se pode considerar um espécime de desleixo futurista”.

A dissonância na aparente adesão ao canto moderno em Campos, que exibe sempre um contracanto nostálgico, aponta o que Leyla Perrone-Moisés (1990) chama de “o futurismo saudosista de Fernando Pessoa”.

3. Conclusão: duas poéticas do olhar, o mesmo espinho

“Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente”, diz Álvaro de Campos no poema Vilegiatura. O sensacionismo de Campos é forjado pelo engenho. Caeiro não alcança a plenitude da objetividade (das sensações convertidas em visão) como Campos não experimenta a ubiquidade do olhar, a convulsão do excesso de sensações que duplica a vertigem de movimento e ruído da paisagem industrial.

Os dois projetos exibem a própria fratura. Estilhaçam o pensar-sentir em fragmentos da mesma ficção. Coincidem na tentativa de refazer o olhar numa espécie de fusão com algo diferente da civilização: em Caeiro, o mais simples e o mais natural; em Campos a própria construção “veleiros e barcos de madeira”, na “antiga vida dos mares” que liberta “do peso do Atual”.

Se, como declara o “mestre do olhar”, Alberto Caeiro, “a sensação é a única realidade aceita”, o que ambos produzem é o avesso disso, a exposição do mito subjacente a todo olhar, numa literatura altamente intelectual, altamente crítica, enquanto engendra na palavra poética o sentimento do mundo.

Maiara Gouveia. Junho de 2021.

BIBLIOGRAFIA

BRÉCHON, R. O Eng. Álvaro de Campos, poeta sensacionista (1914-1916).

CAEIRO, Alberto. Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Hedra, 2011.

________________ O Pastor Amoroso. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/vo000006.pdf Acesso em 06 jul. 2021.

CAMPOS, Álvaro de. “Ode Marítima”. Em: Poesia de Álvaro de Campos. Lisboa: Assírio e Alvim, 2013.

GAGLIARDI, Caio. Os três Caeiros. 2006.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. O Futurismo Saudosista de Fernando Pessoa.Em: Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos (Secção Brasileira). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, II vol., p.17-28, 1990.

LOPES, Teresa Rita. Álvaro de Campos (verbete).

O que pode o corpo de uma língua?

A NOÇÃO DE LÍNGUA TOTAL. Narrativas fundadoras se enraízam num sentido que irrompe da linguagem como revelação da verdade imediata. Isso quer dizer, a verdade não mediada, inteiramente entregue, não corrompida e incorruptível: sagrada.

Essa é a noção de língua total: ela não traduz parcialmente o real ou comunica algo de uma realidade inacessível à palavra. Pra si mesma, a língua total é a própria realidade que emerge onde antes havia o informe.

 “Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: Haja luz, e houve luz.” Gênesis 1: 2-3.

Nessa percepção ancestral, a língua nativa é com o poder de revelar o sentido e a história no que antes era um mistério terrível, o abismo anterior aos nomes. Daí a ideia de que o texto do Alcorão é mais fidedigno em árabe; o da Cabala, em hebraico etc.

Para Lorenzo Valla, filólogo do séc. 15, o latim era “a saúde do orbe terreno… [que] forneceu o caminho para toda a sabedoria.

A QUESTÃO DAS LINGUAGENS TOTALITÁRIAS. Os povos pressentiam que o cerne de cada língua é intraduzível e dá acesso a um universo específico de paisagens narrativas, formas singulares de relevo ao trânsito da sensibilidade de da percepção.

Por outro lado, a inconsciência do caráter mediador da língua é um dos traços da adesão às linguagens totalitárias, que ─ em contraste com sua aspiração à verdade absoluta ─ fazem da mentira uma de suas armas de destruição em massa.

FILOLOGIA. A filologia investiga fontes escritas para determinar, por exemplo, a história de uma língua ou de uma família de línguas. Ela nos dá (entre outras coisas) o sentido exato de um texto ou de uma palavra em sua origem e a dimensão de como as estruturas narrativas possíveis em cada língua têm impacto na forma de perceber e contar o mundo.

POR FALAR NISSO… Deve sair em breve um papo solto que tive com as pessoas lindas Ana Rüsche, Vanessa Guedes e Thiago Ambrósio Lages, para o podcast Incêndio na Escrivaninha. Tema: língua nativa. Alguns fios iniciais e outras aberturas nesse assunto das limitações e potências que compõem a singularidade de cada língua (com suas variações internas e dinâmicas de metamorfose contínua).

***

Por fim, numa paráfrase de Espinosa, registro uma pergunta fundamental: O QUE PODE O CORPO DE UM LÍNGUA?

Na imagem, um poema visual de Joan Brossa, poeta catalão do século 20. A máquina da escritura.

Sexta da Paixão

Depois de seguidas humilhações, que incluíam testes de confirmação de virgindade, a Igreja condenou Joana de Arc. A adolescente de 19 anos de idade foi queimada numa fogueira em praça pública.

Enquanto era consumida pelo fogo e pelos gritos de “bruxa”, “herege”, “blasfema”, ela repetia “Jesus, Jesus, Jesus”.

FOTO: Cena de O Martírio de Joana D’Arc, filme de Carl T. Dreyer. Joana foi interpretada por Maria Falconetti, atriz que morou no Brasil fugindo do nazismo.

ANTES QUE SE ROMPA O FIO DE PRATA, título do meu segundo livro, é de um verso do livro de Eclesiastes:

“Antes que se rompa o fio de prata e se despedace o copo de ouro e se quebre o cântaro junto à fonte e se desfaça a roda junto ao poço e o pó volte à terra e o espírito retorne à sua origem…”.

Gosto de repetir minha tradução etimológica da palavra espírito: aquilo que é invisível e vital como o sopro (a respiração). E somos nós a realização do instrumento de sopro que dá o tom à trilha sonora da presença.

Isto: a presença de espírito. É onde se formam os territórios do possível e os da utopia. Quando o sopro e o som das narrativas riscam uma cartografia no que antes era informe. Eis a gênese do mapa inaugural das representações: espelho do país sem nome.

E por isso é preciso reler as frestas e as margens nos textos modelares e reescrever os mundos possíveis. Tomar no próprio corpo as histórias, verter de outra forma (não violenta) “a Palavra / quebrada no meio de um crânio”. Refazê-la no canto criador.

Por isso reencontro Agar em pleno deserto e as mulheres dilaceradas pela saliva de Brômio, que eram chamadas de bruxas e não cabiam nas manhãs.

Por isso falo das filhas sem nome dadas como oferta ao estupro dos anjos, ou das mutiladas de Moçambique, das mulheres violentadas em Chihuahua ou das Estamiras, e não só delas: de todas as vozes incendiadas pelas linguagens totalitárias, que constroem porões e altares onde a alteridade deve ser banida, torturada, extinta.

Que possamos reler os textos entranhados na formação ocidental à luz da imagem do divino que se humaniza, em combate com tudo aquilo que nos escraviza, partidário da libertação dos povos, da fraternidade, da justiça social.

Divino que faz tombar a mesa da transcendência transformada em mercadoria, que vira essa mesa com as próprias mãos e toma partido dos excluídos, luta contra hipocrisia (especialmente a religiosa), contrário a qualquer linguagem que, em vez de servir à inteligência e à sensibilidade, serve à mentira, à indiferença, ao egoísmo (essa letra morta e assassina).

Divino que sai da posição autoritária e entra na história. E chora e sangra e ama e reparte: pessoa-nome refeita no alimento multiplicado e sempre transbordante nas redes da solidariedade.

O divino na humanidade. Quer dizer: o divino em nós. Eis a paixão. Eis o fogo que extermina o mal. Eis o nome.

 “O Demônio ofereceu por uma alma o mundo, Deus deu por uma alma a Si mesmo; se achardes quem vos dê mais por ela, dai-a” Padre Antônio Vieira

pausa & mudanças


A foto mostra minha avó grávida de um dos meus tios & meu avô, que não conheci.

À frente deles, minha mãe e minha tia pequenas. No canto esquerdo, duas crianças da vizinhança.

Porém esta foto é só um pretexto pra comunicar que tenho mudado tanto desde o fim do ano passado que a partir daqui é outra realidade.

Sabe aquelas pessoas que, 《de repente》, mudam completamente de estilo de vida? Esse processo continua a acontecer dentro de mim.

Em setembro do ano passado, perdi um amor, que morreu de repente (num AVC hemorrágico) enquanto falava comigo ao telefone.

Depois disso, 2 meses depois, houve outro evento que mexeu comigo.

Então, este ano, a pandemia.

No meio dela, de novo repentinamente, tive que ser internada e passei por uma cirurgia de retirada de um ovário.

Já aconteceram muitos pontos de virada na minha vida. Porém, desta vez, foi tanta coisa seguida e com tamanha intensidade…

Não sou a mesma. E continuo me tornando outra.

Curtindo esse processo.

Por isso, uma pausa nos projetos pessoais, pra ver se no fim de tudo ainda cabem nessa outra vida que tem sido gestada.

São Paulo, 15 de novembro de 2020.

Salinas (excerto)

4. EXCLUSÃO

            A galé dos banidos avança à cidade do despejo. O passeio penetra a bruta névoa. (…). Os assobios do vento, uns uivos de demônio, somem no destino, um lugar baixo.

[…]

                     ─ Antes amnésia ─ uma voz gravíssima suspende o rito insone.

            ─ Antes demência. Porque na triagem dos corpos, os loucos e desmemoriados também são lançados no poço, e somem do abandono assim, na ignorância do crime praticado.

            ─ Cuspir na tua cara, chutar a porcelana da tua espinha, e seríamos só infelizes quebrantados, urinados nas calças, no meio do frio. Somos gente, e essa falha não se faz poeira úmida.

            ─ Antes a memória no encalço do erro, ensaiado e estresido desde cedo, até ser dito natural. Durante o pânico, até os insetos matam em bando. Sem suspeitar da culpa. Sem cogitar a pena.

            ─ Só a memória desmancha a nódoa inscrita nas coisas pela repetição da cegueira.

            ─ Pela força dessas lembranças, eu talvez vivesse mais um século. É tanto a fazer.

            ─ Eu só quero dormir.

            ─ E há casas no exílio?

            ─ Às vezes.

            ─ Talvez.

            5. NUS

            Se a pele contrai o frio como quem contrai um delírio de febre, o frio, por sua vez, contrai os séculos como se cada século fosse uma doença, um pensamento mórbido, uma dívida que é impossível pagar. 

            Aquela gente falida, com chagas em alguma parte do ofício de existir, tudo multidão espoliada.

            Os primeiros expulsos remoem as cenas. O arrependimento coletivo sob a peste.

            E a muralha do continente sobe até o ponto onde se oculta o limite. O ponto máximo. Babélico.

          Afundo os calcanhares na brancura. Não tenho mais corte. Só incômodo. Memória de uma dor.

            Penso no barco talvez impossível. E a distração se estende até o pássaro, com o bico no vazio, à espera da história com migalhas.

            B. ainda está aqui. Anda em si como num estranho à procura de toalete. Como alguém dopado pela fumaça de um incêndio no porão, que de repente se visse em casa alheia. O garimpeiro – não esquece – recolhe a beleza debaixo de muita lama e esforço. Pra o luxo de outros. Pra o próprio sustento.

            Morde a maçã. A carne da fruta é cruelmente alegre. Morde como se não comesse há séculos

            : com fome.

            Pediria pão. Pediria água. Pediria mel e leite. Porém há um crime, e é preciso saber mais. Mas o que é preciso saber?

            Não devia explicar. Outros dizem que sim, devia explicar mais. Há sempre muitas dívidas a levar em conta.

            Talvez seja um tipo de arrogância. Pensar como quem nada em mar aberto. As espáduas se enganam que são asas, e então se assombram com o estrondo do fluxo, quando o fluxo se agrava. E o vento cava uma fenda miúda no rosto, e a boca se abre pra engolir o que puder deste espaço. Que existe sem nós.

            Antes, os pássaros da carnificina eram mansos como terra seca. Deixei a morte à vista. Delirei a respeito de coisas bem maiores do que a humanidade. Devia ter vergonha de não cobrir o rosto. De não esconder os lábios rachados pelo frio.

            Há mais de um crime. Porém agora é a criatura despelada o que ainda dissecamos. A falta de ar incha o rosto flébil, e B. exibe os coturnos cheios de neve, o contorno escuro da face, a mancha azul e roxa entre os dedos. Ainda assim parece com mais vida do que Tácito. Lentamente ressuscita nos registros, enquanto as roupas rubras, em volteios, enchem a sala de sol. Sangue, incêndio. Não sei mais. É criatura antiga, anárquica, desenho de esfinge no imaginário da lei.

            É preciso saber. Isso demora. E é preciso saber o que saber. E como saber. E quando.

            Mas não se sabe.

            Qualquer pista é um nome gasto.

            O corpo dobra de tamanho, dobra a dor na respiração, a dor nas costelas: bendita seja a esterilidade do teu ventre, o alívio sem dono que uma nudez esfrega na floresta inerte das coisas comunicáveis. E então toma nos dedos a tela onde se lê: “é isto”.

            E é só.

            Mas não aceita. Não aceita.

            A pressa, a pressa de um estranho que nada tem com isso (até onde sabe, até onde se sabe), essa pressa atrapalha a reconstituição do crime.

            Um perito precisa de mais de espaço pra devolver a um corpo sua condição de gente.

            Nesta pauta não há mais peritos. O crime é tão antigo que prescreveu. A vítima ainda convulsiona como um possuído enquanto o espírito de porco despenca, e há todo o tipo de coisa a querer do outro lado. O lado onde nenhum de nós pode chegar. Foi essa pressa que trincou o primeiro vidro.

            É preciso voltar, recolher as raspas de remédio vencido, rasuras. É preciso estar aqui, acordado como um louco, entregue e solitário, babando a si mesmo por todos os poros.

            Pulo de vez.

            O desamparo acossa. Digo enfim

sós

            : o que te leva a imaginar fundura humana suportável.

            Voltamos ao limite. Voltamos:

            Estamos nus. E sabemos.

Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.

Imagens. Stephanie Inagaki.

Salinas (excerto)

2. SUPORTE

            É proibido ferir-se. Não esqueça.

         O comércio de hologramas prosperou. Quem sairia à rua vestido na própria pele? 

            Confinado nas horas mais íntimas, o corpóreo se tornou, pra muitos, um fardo. Nem sempre suportável. Alguns, mesmo sem a condenação ao exílio, pediam a submissão ao “carcereiro químico”, o alívio temporário, mas efetivo, alcançado pela dormência das necessidades e os desejos do corpo recluso.  

            Houve a imposição de regras específicas a certos tipos de suporte. Por exemplo, só se permite menstruar a quem puder pagar o preço.

            Taxada pelo preço do ridículo ou do fantástico, a decisão de recusar o código antimenstrual, regulador dos ciclos do suporte fêmeo.

            Suporte.

           Foi assim com as refugiadas. Foi assim com as cerzideiras. Pagaram o preço.

           […]

3. CERZIDEIRAS

            Fico neste quarto até cansar de ver a sombra das grades no tule e na pele. Forma recortes na brancura, que se estende – interminável – até o vestido. Ali, nas bordas da caixa, parece um pano eviscerado.

            A janela tem grades pra impedir que os meninos se acidentem. Nenhum deles virá hoje. Nada das correrias e os gritinhos em falsete. Faço de conta por eles que sou eu. A cerzideira.

            Imagino o continente do tamanho de um dedal. Agora sou bem menor que a cabeça de uma agulha. E estou entre as caixas, os trapos, as coisas esquecidas. Com olhos que são furos num lençol.

            Gosto das cenas com lençóis: a quietude balança, toda limpa (e por um fio). Pode ser no leito de núpcias, a espera esticada e branca. Uma espera por levantes. Porque os lençóis são signos de anúncio. Logo se reconhece o tumulto das vozes em cada tira de algodão. O sono interrompido pelo gesto: expiração da força onírica.

           Os pequenos, por exemplo, transformam o tecido em lábaros de guerra: os panos são rapidamente arrebatados por pirataria e heroísmo.

           Os amantes, por sua vez, as tramas macias com outro ritmo: o brusco do imprevisto. Porque é insustentável a placidez da costura.

            Sinto-penso: estou aqui por vontade própria. Mas sei bem que estou prisioneira de incidentes que me ultrapassam. Fora daqui há tanta neve. Queima até a voz. Imagine isto: uma voz incendiada pelo frio. Pó, fendas, quinquilharias. Sou parte do que tem falhas. Cubro esse escândalo com tule branco.

            Imagine isto: alguém vai ao médico, e o médico censura a exibição despudorada de uma febre ou, pior, de uma doença crônica. Aqui não se trata de exercitar a força, mas de entender a força como único horizonte. E há muitas noites em que tenho pesadelos com gente que aponta meus pés e me expulsa às bofetadas. Ando sempre à beira do exílio. Mordo a língua. Tomo o cuidado de não respirar fundo demais.

            Qualquer indisposição expressa às claras é um risco muito alto. Há sempre um controlador à espreita. Mesmo em manifestações de alegria, eles destroçam às dentadas quem surge de repente com o rosto mal lavado. E o corpo tem das suas tiranias. Qualquer onipotência teria se esvaído entre as pernas como a menstruação.

Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.

Imagens. Yulia Napolskaya.

habitar outra voz

fazer da voz um campo de acolhida — uma habitação pra refugiados — talvez seja uma das potências da poesia 》 aqui, num arranjo pela democracia, num @ato.poetico

habitar este livro. habitar a voz de uma das pessoas que mais admiro e quero bem, @marciatiburi ♡

habitar cada voz que ache espaço entre as palavras (e que elas cresçam desta semente de mostarda) guardar um instante como quem atravessa a fragilidade e nesse gesto tece um manto em favor da pele (do que na pele é fôlego 》 pra si e pro outro)

guardar este instante como quem respira fundo

outra vez

#atopoetico #poesia #resistência