A NOÇÃO DE LÍNGUA TOTAL. Narrativas fundadoras se enraízam num sentido que irrompe da linguagem como revelação da verdade imediata. Isso quer dizer, a verdade não mediada, inteiramente entregue, não corrompida e incorruptível: sagrada.
Essa é a noção de língua total: ela não traduz parcialmente o real ou comunica algo de uma realidade inacessível à palavra. Pra si mesma, a língua total é a própria realidade que emerge onde antes havia o informe.
“Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: Haja luz, e houve luz.” Gênesis 1: 2-3.
Nessa percepção ancestral, a língua nativa é com o poder de revelar o sentido e a história no que antes era um mistério terrível, o abismo anterior aos nomes. Daí a ideia de que o texto do Alcorão é mais fidedigno em árabe; o da Cabala, em hebraico etc.
Para Lorenzo Valla, filólogo do séc. 15, o latim era “a saúde do orbe terreno… [que] forneceu o caminho para toda a sabedoria.
A QUESTÃO DAS LINGUAGENS TOTALITÁRIAS. Os povos pressentiam que o cerne de cada língua é intraduzível e dá acesso a um universo específico de paisagens narrativas, formas singulares de relevo ao trânsito da sensibilidade de da percepção.
Por outro lado, a inconsciência do caráter mediador da língua é um dos traços da adesão às linguagens totalitárias, que ─ em contraste com sua aspiração à verdade absoluta ─ fazem da mentira uma de suas armas de destruição em massa.
FILOLOGIA. A filologia investiga fontes escritas para determinar, por exemplo, a história de uma língua ou de uma família de línguas. Ela nos dá (entre outras coisas) o sentido exato de um texto ou de uma palavra em sua origem e a dimensão de como as estruturas narrativas possíveis em cada língua têm impacto na forma de perceber e contar o mundo.
POR FALAR NISSO… Deve sair em breve um papo solto que tive com as pessoas lindas Ana Rüsche, Vanessa Guedes e Thiago Ambrósio Lages, para o podcast Incêndio na Escrivaninha. Tema: língua nativa. Alguns fios iniciais e outras aberturas nesse assunto das limitações e potências que compõem a singularidade de cada língua (com suas variações internas e dinâmicas de metamorfose contínua).
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Por fim, numa paráfrase de Espinosa, registro uma pergunta fundamental: O QUE PODE O CORPO DE UM LÍNGUA?
Na imagem, um poema visual de Joan Brossa, poeta catalão do século 20. A máquina da escritura.
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