
2. SUPORTE
É proibido ferir-se. Não esqueça.
O comércio de hologramas prosperou. Quem sairia à rua vestido na própria pele?
Confinado nas horas mais íntimas, o corpóreo se tornou, pra muitos, um fardo. Nem sempre suportável. Alguns, mesmo sem a condenação ao exílio, pediam a submissão ao “carcereiro químico”, o alívio temporário, mas efetivo, alcançado pela dormência das necessidades e os desejos do corpo recluso.
Houve a imposição de regras específicas a certos tipos de suporte. Por exemplo, só se permite menstruar a quem puder pagar o preço.
Taxada pelo preço do ridículo ou do fantástico, a decisão de recusar o código antimenstrual, regulador dos ciclos do suporte fêmeo.
Suporte.
Foi assim com as refugiadas. Foi assim com as cerzideiras. Pagaram o preço.
[…]
3. CERZIDEIRAS

Fico neste quarto até cansar de ver a sombra das grades no tule e na pele. Forma recortes na brancura, que se estende – interminável – até o vestido. Ali, nas bordas da caixa, parece um pano eviscerado.
A janela tem grades pra impedir que os meninos se acidentem. Nenhum deles virá hoje. Nada das correrias e os gritinhos em falsete. Faço de conta por eles que sou eu. A cerzideira.
Imagino o continente do tamanho de um dedal. Agora sou bem menor que a cabeça de uma agulha. E estou entre as caixas, os trapos, as coisas esquecidas. Com olhos que são furos num lençol.
Gosto das cenas com lençóis: a quietude balança, toda limpa (e por um fio). Pode ser no leito de núpcias, a espera esticada e branca. Uma espera por levantes. Porque os lençóis são signos de anúncio. Logo se reconhece o tumulto das vozes em cada tira de algodão. O sono interrompido pelo gesto: expiração da força onírica.
Os pequenos, por exemplo, transformam o tecido em lábaros de guerra: os panos são rapidamente arrebatados por pirataria e heroísmo.
Os amantes, por sua vez, as tramas macias com outro ritmo: o brusco do imprevisto. Porque é insustentável a placidez da costura.
Sinto-penso: estou aqui por vontade própria. Mas sei bem que estou prisioneira de incidentes que me ultrapassam. Fora daqui há tanta neve. Queima até a voz. Imagine isto: uma voz incendiada pelo frio. Pó, fendas, quinquilharias. Sou parte do que tem falhas. Cubro esse escândalo com tule branco.
Imagine isto: alguém vai ao médico, e o médico censura a exibição despudorada de uma febre ou, pior, de uma doença crônica. Aqui não se trata de exercitar a força, mas de entender a força como único horizonte. E há muitas noites em que tenho pesadelos com gente que aponta meus pés e me expulsa às bofetadas. Ando sempre à beira do exílio. Mordo a língua. Tomo o cuidado de não respirar fundo demais.
Qualquer indisposição expressa às claras é um risco muito alto. Há sempre um controlador à espreita. Mesmo em manifestações de alegria, eles destroçam às dentadas quem surge de repente com o rosto mal lavado. E o corpo tem das suas tiranias. Qualquer onipotência teria se esvaído entre as pernas como a menstruação.
Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.
Imagens. Yulia Napolskaya.