
[Uma história que comecei a escrever em 2010 e que em 2020 parece urgente.]
capítulo 1 | não esqueça
Instituiu-se a lei do banimento.
O perigo – foi dito – é o contágio. A peste espraiar-se entre os muros e as telhas e fazer do cenário uma doença sem cura.
O inverno estende-se no solo (pele e sudário), e a memória cumula porções de branco: amontoa salinas à ideia de alvura abrasiva.
Salina: planura de cristal feita de mar evaporado. Ausência de sal. Ausência de mar. Só há estas nevascas de fazer ferida. Porém é proibido. Ferir-se.
Não esqueça.
Os primeiros expulsos foram os idosos e os debilitados. E agora são tantas minúcias a decidir quem permanece, que imagino a fundação de um continente de banidos.
O dia de recolher é o pior. Espiam cada fresta de espaço à cata dos feridos. E despejam a humanidade em caçambas, repartida em pilhas simétricas.
Quando a galé avança, a náusea reverbera (na luta em si mesma) a litania úmida dos cativos (um canto pra dentro). E porque humilhação a mais estoura em revolta, às órbitas de cada corpo – marcado com uma sentença numérica – acopla-se o “carcereiro químico”.
O “carcereiro” é um implante. Castra o ímpeto e até o ânimo. O corpo abatido entende e suporta. Isso dura até o ponto de chegada: o território do descarte.
Se as tentativas de rebelião não se tornaram regra, o mesmo não se diz das bacias quebradas, fratura de ossos, gente a se espatifar no chão como louça suja.
E os pequenos perguntaram coisas impossíveis. Queriam entender o esquecimento. E com o espanto preso à face, insistiam “esquecimento”, tomados de assalto pelo som da palavra e pelo sentido alheio de sua música.
Enregelados na súbita revelação, subiam, no íntimo, montanhas de gelo. Descobriam a afinidade fundamental entre ascensão e densidade. Isso. E como se transforma gente em coisa inválida.
Maiara Gouveia. Texto original: São Paulo, 2010.