muitos poetas responderam ao convite da vandalização. criar uma contrapalavra ou uma palavradeordem. vale, claro, pelo poema coletivo, mesmo com seus baixios enormes, balbuciando associações de vinagre e revolução (ou às vezes salada, num jocosismo do imediato): ainda assim, dar a cara a tapa, ofender, conceber a formalização de um gesto de desrecalque. a questão essencial é como articular poesia e propaganda, universal e particular, estética e referência. alguns poetas, por exemplo, ofereceram poemas políticos, sim, mas de qualquer política, desreferencializados do fato em questão. outros aderiram demais ao problema, o que fez de seus poemas objetos para paráfrases, escapando do tanto de subversão próprio ao poético (e pq não ao próprio movimento das ruas?). a pauta da mobilidade centraliza as intervenções, e é de mobilidade que se trata no espectro dos poetas participantes: da erudição em Maiara Gouveia às experiências visuais (o imediato para um momento da urgência) de Jussara Salazar (ou a minha parceria com Rubens Guilherme Pesenti),do destempero punk boca do inferno de Thiago Cervan ao clima de canção francesa engajada no lirismo de Marcelo Sandmann. poesia boa e poesia ruim em convivência democrática, em união por um gesto contra o emudecimento social. são exemplos de boa poesia as participações de Fabiano Calixto, Camila do Valle, Andréa Catrópa, Alberto Lins Caldas, Jeane Callegari e Eduardo Vândalo Sterzi, entre outros. mas gostaria de destacar duas composições que parecem ter equacionado de modo mais inventivo as pressões do poema e as pressões da rua. assim, Micheliny Verunschk Guarani Kaiowá, num clima de absoluta canção, reiterativa e direta, consegue cumprir a diversidade fluida das intenções na referência aos simples vinte centavos que compreendem tudo, mas principalmente as algemas nas mãos (e nas vozes). e, de outro lado, num tom discursivo de prosa metódica, a reflexão poética em torno ao nazismo psíquico e ao alcance da voz do poeta diante do problema. Marcelo Ariel nos surpreende ao apresentar o poder de silêncio da palavra poética, talvez a arma mais letal em tempos de grita.
De Nanã a Hebrom: a trajetória do verso | Resenha
Mário Dirienzo resenha meu primeiro livro, Pleno Deserto (texto de 2008).
PLENO DESERTO
Livro de poemas
Edição artesanal | Tiragem limitada
Brasil, Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2009

Pleno Deserto é uma peregrinação sedenta e aquosa pelo vazio que é plenitude; pela plenitude que é vazio. “À espera de milagres”, “inermes”, eis, pois, a sina dos mortais, estampada em poemas como “Cuia dos Milagres” e “Inerme”. Milagres acontecem, fazem-nos sentir que somos deuses. Todavia, por acontecerem, são meros episódios. Logo deixamos de ser deuses; somos “adeuses” dados depois de uma viagem.
Nanã é a divindade africana das águas paradas, dos pântanos e da lama. É também a responsável pelo portal da entrada neste mundo, bem como por aquele mediante o qual se sai da vida terrena. Nanã aparece no primeiro poema do livro, dá o fluido e moldável fluxo de Pleno Deserto. A aridez do deserto é da ordem do “sonho na concha” – “úmido silêncio”. Mas o sonho sai do caramujo, e o sol “estende-se em estupendo lençol:/ enorme plantação de laranjas”, e o ser desperta com “a alma na boca”.
As artimanhas do “estro” – o termo significa tanto cio quanto imaginação poética – surgem mesmo nas manhãs frias de “Alba”, nas quais o amado partiu antes do término da noite. Sob as artimanhas do estro, como se vê em “Cimo” – um dos pontos altos do livro – não há perda, mas acúmulo de “doçura”, “susto”, “guerra”, “loucura”, pois o que é sumo, ainda que abismal, é cimo, porquanto há sempre outra face a ser dada, a ser vista e, mesmo na maior mágoa, há a ressurreição nos conventos ou nos lupanares, no recato e no desacato.
O caráter indiscernível desse “pleno deserto” de Maiara Gouveia implica “flores de sangue” e “mulheres líquidas que esvaem”: gozo que é agonia; agonia que é gozo. Um segundo a mais é o que pede o mortal, sequioso da imortalidade de alguém, do amor ou de qualquer forma de “sede sempiterna”, pois a única maneira de bastar-se é “transformar todo o desejo em saciedade”: “águas são deserto” e o conhecimento do inferno impõe-se aos nossos parâmetros paradisíacos. De modo que a aridez do deserto, para além da morte que a vida pode incorporar e cantar, manifesta-se em sua ruidosa mudez em todos os lugares, até nos recantos mais insuspeitos como uma “sala de poetas”. Eu disse “insuspeitos”, mas deveria dizer “os mais suspeitos”, pois ninguém é traído a não ser pelos seus. O canto até pode “inundar essa sala”, onde jazem os literatos com a concisão de suas “palavras magras”, com o seu estro anoréxico, que nunca rasga o verbo ou a fantasia. Mas esse canto jamais servirá para erguer torres de marfim, soando apenas para derrubar as torres de Babel ou as muralhas de Jericó.
A poesia é medida e desmesura, sem nenhum compromisso com a cortesia ou com o comedimento. Seu angelismo é luciférico: é o dos “anjos de rapina”, dos anjos-chacais. Diz o Bom Livro que a chuva cai sobre os justos e os injustos, assim, nada mais justo – ou injusto – que a raposa ver “o sagrado na presa consumida”. Mas a chuva é feita de lágrimas, das lágrimas do Alto, que banham as folhas vermelhas do sangue derramado.
Em Pleno Deserto, a poeta toca em pontos pungentes da vida, que é sempre visceral, brutal e poética, em que pese a pluma leviana dos poetas: a vida é morte, predação, belas frutas são tão apetitosas como o sangue fresco dos filhotes. Fome e sede são o mote que atravessa o pleno deserto poético de Maiara.
Detrás de um texto, há um número infindo de outros textos. Dentre os textos que formam a trama de Pleno Deserto está o salmo 63, citado pelo magnífico poema “Presságios”. O salmo 63 é aquele que diz: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro./ Minha alma tem sede de ti,/ minha carne te deseja com ardor,/ como terra seca, esgotada, sem água./ Sim, eu te contemplava no santuário,/ vendo teu poder e tua glória.” Em “Presságios”, uma mulher, sintomaticamente chamada “Dolores”, encarna a “dor ancestral”, na qual “não cabem visões de plenitude”. Dolores fecha as janelas e apaga a luz. Às vezes é melhor o sono reparador do que o sonho vão, neste nosso mundo “sublunar”. De acordo com a visão aristotélica do cosmos, o que está abaixo da Lua é imperfeito, ao passo que o “supralunar” seria perfeito. O mundo de “Presságios” é sublunar. Nele, a lua é mera mancha do sol, pendendo sobre o grande ermo que é esta existência, espelhando a nossa face de mortais, dissolvidos na eternidade e – no mar.
Busco agora o auxílio de um poeta experiente na arte não só de escrever, mas de ler poemas dos outros: Octavio Paz. Em seu famoso livro O Mono Gramático, o poeta mexicano afirma que a poesia não está escrita numa gramática paradisíaca. Diríamos, pois, que está escrita numa gramática da Queda. De fato, a natureza é inocente e decaída ao mesmo tempo. Para Paz, a linguagem é a “crítica do Paraíso”, pois no Paraíso as coisas tinham nomes próprios, ou seja, coisas e nomes eram o mesmo. O aparecimento da linguagem seria a própria Queda, o diabólico reino da arbitrariedade do signo.
Eis o que diz Paz: “O poeta não é o que nomeia as coisas, mas o que dissolve seus nomes, o que descobre que as coisas não têm nome e que os nomes com os quais as chamamos não são seus. A crítica do paraíso se chama linguagem: abolição dos nomes próprios; a crítica da linguagem se chama poesia: os nomes desgastam-se até a transparência, a evaporação. No primeiro caso, o mundo torna-se linguagem; no segundo, a linguagem converte-se em mundo. Graças ao poeta o mundo perde seus nomes. Então, por um instante, podemos vê-lo tal qual ele é – em azul adorável”.
Essa concepção da poesia e do papel do poeta pode talvez captar o sentido de poemas como “Primeira Visão” e “Oblação”, nos quais não há uma “palatável” fruição do sagrado, mas sim uma visão abismal do sagrado a partir da cisão fundamental entre o divino e o humano, pois os mortais “vivem na ira de Deus” e “não há piedade nos caminhos de Deus”. A Beleza, como nos advertiu Rilke, é o grau do terrível que podemos suportar. A visão do divino é aniquiladora, por isso, só podemos vê-lo por um instante e depois perecer, perdendo-nos no terrível, infinito azul adorável. Além de “Cimo”, Pleno Deserto tem um outro cimo: “Oblação”. Nesse poema, a condição do poeta aparece em toda a sua pungência, assim como a sede e o salmo, que são os fios condutores do livro, adquirem seu pleno sentido. Diz a poeta: “Meu salmo não serve para encontrar a paz./Procura apenas a vibração da beleza.” Acredito que todos aqueles que, algum dia, com seriedade, tentaram ser poetas podem adotar esses versos como divisa. Ser poeta não é ser alegre. Tampouco é ser triste. É, seguindo Cecília Meirelles, “cantar porque o instante existe”. “Sei que minha carne em breve será pasto/ do rude mensageiro”, afirma Maiara. Mas acrescenta: “Preparo meu corpo para o encontro/ com lágrimas de êxito.” Ao lado da sede que salmodia, as lágrimas, também na forma de chuva, são fenômenos que percorrem Pleno Deserto.
A visão de mundo antiutópica dos poemas impede que se abrace alguma utopia fácil, que reduza a felicidade humana a um esquema político, no fundo, administrativo. O caminho que aqui se traça é o da umidade íntima, mística e lacrimosa, na qual, todavia, permanece o Ser. O Ser é o que “sempre será”. Mas o Ser não é “verdade nenhuma contra a luz do sol”: nunca é uma evidência, algo que deixa “pegadas”, sempre é “na sombra das águas”.
O sol é árido, em sua inclemência pode trazer a desértica esterilidade. O sol costuma ser imagem da Razão, do ressequido, da dissecação, do ressentimento, frio em sua ardência calculista. A “metafísica da água”, dionisíaca, destitui Apolo – deus da simetria, identificado ao Sol – de sua árida razão, de sua estatuária eternidade: dos diques construídos para deter “a beleza erradia das águas antigas”. Mas as águas antigas não têm o condão de destruir o poder apolíneo. Flexíveis, as águas se amoldam ao “pulso” do verbo de um potente poeta.
A lógica da Queda elimina a subordinação de um ente a outro. Todos jazemos sob a Queda; todos, menos o Grande Outro, mas mesmo ele, ao fim e ao cabo, opta por cair e ser todos e Ninguém.
A perspectiva da poeta é a da “água lunar”, que puxa o “animal solar para dentro da lua” e o “helianto (girassol) para o centro da noite”. Não obstante a Queda, esta traz a “união dos caídos”, a “comunhão do exílio” e o sacrifício vivo, que pode ser muito bem o consumo da hóstia ou a consumação das núpcias, do “Himeneu” que vai fechando Pleno Deserto. “Himeneu” tem a mística erótica dos bíblicos Cantares de Salomão, evocação corroborada pela alusão a Hebrom. O vale do Hebrom é o local onde os primeiros patriarcas hebreus estão enterrados. “Himeneu” seria um “hierógamos”, um casamento sagrado que cicatrizaria as feridas. Mas as feridas nunca se fecham: “sempre ferida aberta o amor”. E “não se retém o amor na concha das mãos”.
O vale do Hebrom, atual palco de acirrados conflitos entre judeus e palestinos, não pode ser a última palavra, o último poema. O Poema não se ultima. “A morte canta. O corpo sonha”. O sonho – diria a alma –, que anima o corpo, significa “não viver a despedida com afinco”. Há a nênia – canto fúnebre – contraponteada pelo allegro do sonho do corpo. A nênia é o canto de Nanã, essa Deméter africana, regendo os submundos do Ser. Nanã nunca faria um par perfeito com um patriarca hebreu, contudo: “Há tanto mistério a ser capturado em pleno dia./ Há tanta morte emudecida no sonho do corpo.”
A trajetória do verso culmina com o reverso. Eis o ponto final, que são reticências; o conflituoso ponto pacífico. De novo, Paz: “O caminho da escritura poética resulta na abolição da escritura: no final, ele nos obriga a enfrentar uma realidade indizível”. “A poesia é número, proporção, medida: linguagem – só que uma linguagem voltada sobre si mesma e que se devora e se anula para que apareça o outro, o sem medida, o vazamento vertiginoso, o fundamento abismal da medida. O reverso da linguagem.”
FEV./08 – Mario Dirienzo
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