Encontros literários | Diálogo com André Setti

Leonora Carrington (A Maga do Tarô)

ANDRÉ. Dentro do contexto social, político e cultural, qual é a função da poesia? Ela serve para algo além da fruição estética?

MAIARA. Quando você faz a linguagem se mostrar, quando põe a linguagem em evidência num objeto artístico (por exemplo, um poema), isso torna lúcido o processo inventivo que é dizer, expressar, torna evidente também o caráter movediço do que se julga estabelecido. É um acontecimento silencioso, invisível. Poesia não é para construir, mas pra arruinar. Arruinar o medo. Aquele arranjo inicialmente inofensivo causa um efeito em quem frui, e esse efeito é uma percepção mais aberta, mais atenta, mais capaz de reconhecer modulações na relação entre essa construção que chamam de eu e a construção que chamam de mundo. O serviço da poesia (e, com ele, o da fruição estética) é desfazer certos tipos de lógica, como a da instrumentalização de tudo, e expor a razão incandescente da própria linguagem.

ANDRÉ. O que te motiva a escrever?

MAIARA. Escrever é prazeroso e escrever é uma forma de apalpar a vida, os detalhes escapadiços dela, pôr o imprevisto ou a perda ou a sensação, pôr isso num arranjo inventivo, criar objetos: insinuantes ou incômodos, coisas que escalam ou escavam ou pinicam. Também é borrar certos limites instaurados. O que é sonho e o que é história? Quem determina que isso não é aquilo e por quais razões.

Elizabeth Opalenik (O Voo dos Sonhos)

Gosto de expor como as feridas (históricas ou pessoais) podem dar espaço a uma atuação criativa no mundo quando encaramos as palavras, a participação delas em certas ordenações, na ilusão de solidez (constitutiva das instituições) etc.

ANDRÉ. Fale de Gilgamesh, do seu estudo de textos antigos e como isso ecoa em sua obra.

MAIARA. No meu primeiro livro, Pleno Deserto, citei no texto de abertura os milhares de anônimos que participaram de construções gigantescas: palácios, templos, muralhas. Anônimos, gente escravizada que criou obras arquitetônicas absurdas. O anonimato e a mortalidade são temas importantes pra mim e são pontos tensos, nós, na temática de diferentes civilizações antigas. Gilgamesh, essa maravilha literária, é composto de uma coleção de fragmentos encontrada só no século 19, um texto ainda incompleto. E tem esse nome, de um rei que existiu na Mesopotâmia, convertido ali num rei-lenda, um rei-texto, todo signo. A autoria e o nome são borrões. A existência de qualquer coisa tem um coração feito de ruína. Nos textos antigos, isso é evidenciado em cada detalhe: desde a forma como são descobertos até a mistura entre história, ficção, elementos da mitologia local, usos ritualísticos/sociais de fórmulas específicas. A poesia, a sociedade, os contextos e tudo o mais que foi recortado em tiras, esquartejado pela razão enciclopédica, formam esse emaranhamento ciente da fragilidade, da proximidade da morte. Por isso pedem com força o além, o que o barro não diz, não dá (pedem sabendo na oração a contundência do fracasso, o fracasso fundador). Amo de paixão esse olhar abismado de quem sabe que é tudo espantoso, é tudo um espanto, nada está claro, nada é certo, nada basta a si mesmo, não basta, a impotência quer a potência máxima. Isso não ecoa na minha obra. Isso é a principal matéria da minha obra. Daí o reconhecimento dessa posição: o mistério é a cerca em torno das suas plantas, das suas ovelhas, o mistério é terrível, o mistério é grandioso, o mistério é grávido de epifania e peste, o mistério é uma boca, é uma escada, é a abertura para a profusão dos signos, o mistério, o mistério, o mistério. E o resto é barulho.


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