Heidegger para iniciantes

O que é isto: a filosofia? | (esboço)

Para entrar em ressonância com a filosofia, para saber “Que é isto, a filosofia? ” – tema de uma conferência proferida por Heidegger em 1955 – não bastaria investiga-la sob o ponto de vista de sua história. Para Heidegger, importa saber o que é a filosofia nela mesma, qual é o ser da filosofia: esse era o modo de perguntar dos primeiros filósofos, esse é o modo de perguntar originariamente filosófico: “o que é o ente enquanto é?”. Para saber o ser da filosofia, entrar em ressonância com o ser, é preciso recuperar sua origem.

Nessa investigação de como surge e se desenvolve a filosofia, retorna à vinculação indissociável entre filosofia e mundo grego. Manifestada pela primeira vez na palavra grega philosophía, carrega em sua essência o mundo grego, toma em si a existência do mundo grego e faz dele instrumento de seu desenvolvimento. Porque a palavra original corresponde ao ser e determina seu destino.

Mas antes da palavra philosophía e, portanto, da existência do propriamente filosófico, um pensador como Heráclito já fala de anèr philósophos, aquele que hòs philei tá sophón, que ama sophón, está em acordo (em harmonia) com sophón. Heidegger nos diz que sophón quer dizer, em Heráclito, “todo ente é no ser”, ou, “mais precisamente: o ser é o ente”.

 “…E, entretanto, precisamente isto, que o ente permaneça recolhido no ser, que no fenômeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos o mais espantoso…”

Será o confronto do espanto com o claro entendimento dos sofistas o embrião da filosofia, nascida em Sócrates. Esse confronto pode ser chamado também de um desacordo, dissonância em relação a sophón. Aqueles inclinados ao mais espantoso deixam de ser por ele plenamente tocados e, a partir dessa falta fundamental, tornam-se aspirantes a sophón. O philéin torna-se aspiração, e a procura pelo ente no ser produz a questão “o que é o ente enquanto é?”.

“Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) está em marcha já desde os primórdios, e também agora e para sempre e para o qual sempre de novo não encontra acesso (e que por isso é questionado): que é o ente? (ti tò on).” Aristóteles. Metafísica, VI, 1, 1028 b 2ss.

A filosofia está em marcha para “o ente sob o ponto de vista do ser”. “O ser do ente consiste na entidade”. Para Aristóteles, o ente é constituído de suas “primeiras razões e causas”. Heidegger questiona a propriedade de “razão” e “causa” para caracterizar e assumir o “sendo-ser do ente”. A partir desse questionamento, propõe dialogar com todos os pensadores que, desde Platão – isto é, todos os filósofos –, se impuseram o problema do ente enquanto é.

Porém esse diálogo não ocorreria pela consideração das afirmações históricas da história da filosofia, mas naquilo que na filosofia buscou corresponder à interpelação do ser do ente. Aqui entra a ideia de “dis-posição”, estar em “dis-posição” seria estar “ex-posto, iluminado e com isso entregue ao serviço daquilo que é”, assim “dis-por” o dizer em harmonia com o ser do ente.

A disposição afetiva da filosofia moderna não seria mais o ente sob o ponto de vista do ser, mas o ente sob o ponto de vista do acordo com a certeza. Se a pergunta filosófica se torna “qual é o ente seguramente verdadeiro?”, será a certeza a medida determinante da verdade. Sendo o cogito cartesiano a resposta a essa nova questão filosófica, assim é instaurado o subjetivo e, nessa mesma instauração, elevado ao lugar do ente seguramente verdadeiro. A confiança na evidência inaugura a modernidade em filosofia, e a partir de Descarte, portanto, a epistemologia torna-se mais relevante ao filósofo do que a ontologia. Um filósofo medieval ainda pensaria em delimitar o ente sob o ponto de vista do ser, o ente naquilo que ele é.

Heidegger impõe a si a tarefa de uma crítica radical à tradição filosófica, a procura pelo cerne, pelo originário, a recuperação da ontologia. Porque, ao transformar a linguagem em instrumento mediador, ao classificar, categorizar e transformar o ser em objeto, ao confundir ser e ente, a filosofia teria abandonado seu destino original.

Porém a filosofia tem o espanto como forma embrionária. E esse espanto originário não é apenas o lugar de nascimento do filosofar, mas o que “carrega a filosofia e impera em seu interior”. Aquele espanto diante do ser do ente.  Já convocados pelo apelo do ser, nos tornamos filósofos, e a filosofia é esse modo de dizer convocado pelo ser, uma linguagem que corresponde a esse apelo. O pensamento, portanto, estaria a serviço da linguagem, e não o oposto.

Na experiência grega da linguagem reconheceríamos a filosofia como uma “privilegiada maneira de dizer”. Sendo a linguagem, na essência, manifestação do ser, sendo a poesia privilegiada servidora da linguagem, existiria um parentesco entre poesia e filosofia, embora, ao mesmo tempo, um abismo.

A linguagem-manifestação, que manifesta a coisa mesma ao dizê-la, é o anseio pulsante na filosofia de Heidegger e, para ele, o que é propriamente filosófico.

Contrapondo-se à instrumentalização da linguagem e do pensamento, consequência do desenvolvimento da filosofia como afastamento e esquecimento do ser, a filosofia que ele propõe é a de um reencontro com o mais espantoso, a de uma linguagem que nos possui, nos toma, onde, submersos e plenamente conduzidos, podemos corresponder ao apelo do ser.


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