imagem: foto de ryan mcginley
Diz a filósofa espanhola Maria Zambrano: “Filosofia e História marcham juntas para diante movidas pela vontade, enquanto que a poesia se submerge sob o tempo, desprendendo-se dos acontecimentos, em busca do primário e original; do indiferenciado, onde não existe nenhuma distinção.” (1). Bataille esquadrinha esse desejo pelo indistinto, pela continuidade. E a partir de alguns versos do poeta Arthur Rimbaud busca “tornar mais sensível a ideia de continuidade que quis salientar”: “A poesia conduz ao mesmo ponto como cada forma do erotismo; conduz à indistinção, à fusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, à morte, e pela morte, à continuidade: a poesia é l’éternité. C’est Ia mer allée avec le soleil.
[…a eternidade. O mar de partida com o sol.]” (2).
Penso também na oitava das Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke, na tradução de Dora Ferreira da Silva.
“… E olhai a indecisão do que deve/voar, expulso do seio. Espantado de si mesmo/fende o ar, taça partida. Assim risca o morcego,/no seu voo, a porcelana da tarde”.
“Ignoramos o que é contemplar um dia, somente/um dia o espaço puro, onde, sem cessar,/as flores desabrocham. Sempre o mundo,/jamais o em-parte-alguma, sem nada: o puro,/o inesperado que se respira, que se sabe/infinito, sem a avidez do desejo.” (3)
Há muita falta. E nessa falta está oculta a nudez inatingível que a poesia emoldura.
(1) ZAMBRANO, Maria. Poesia e Metafísica. Universidade da Beira Interior Covilhã, 2008. Tradução: José Bento. (Livro publicado originalmente em 1939) (2) BATAILLE, Georges. O erotismo. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. (3) RILKE, Rainer Maria. As elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Globo, s/d.
A poesia se descola da falha fundamental na linguagem e faz escorrer um imprevisto, uma rearticulação intensa. Condensa num ritmo todos os contrastes sintonizados pelo corpo altamente poroso de quem se dispõe à força poética.
Ainda não se acende incêndio nenhum porque digo fogo. Mas algo em mim pode ser chamuscado por aumentar a voltagem de certos pontos da percepção.
A poesia produz sutilezas e filigranas que subvertem o habitual. Frisa na linguagem, talvez, o estranhamento que as coisas mudas teriam diante dela. O que diria em nós o “inesperado que se respira”.
Digo: a poesia entende profundamente o caráter vicário da linguagem e faz disso uma potência alquímica. Porque, ao recodificar a linguagem, reinventa fundamentos. Interferir na percepção habitual é iniciar um tipo implosivo de transmutação. Uma revolução invisível.